30 maio, 2014

"A arte da vida" de Tsering Paldrön

"O Budismo é por vezes acusado de pessimismo. É verdade que hoje em dia se tornou inconveniente - para não dizer obsceno - falar de doença, de morte, de velhice ou de sofrimento. Compreende-se: apesar dos telemóveis, dos elevadores, dos telefones, da internet, dos micro-ondas e de todos os botões a que os nossos dedos se habituaram, talvez nunca tenha existido uma sociedade cujos membros estivessem tão mal preparados para o sofrimento. Não sabendo que sentido dar à nossa existência, ficamos aniquilados e perdidos diante de uma sofrimento absurdo e imprevisto. Os mais lúcidos têm a impressão de terem sido ludibriados: tinham-lhes prometido que a tecnologia, a medicina, a assistência social e o casamento iam fazê-los felizes e ninguém lhes tinha explicado que também iam sofrer, envelhecer, adoecer e morrer."

A monja Tsering Paldrön (Emília Marques Rosa), nasceu em1954, em Lisboa.
Tornou-se estudiosa e praticante do Budismo, em 1974.

A ARTE DA VIDA - Valores humanos no pensamento budista, de Tsering Paldrön
Ed. Pergaminho, 2001
190 págs.

23 maio, 2014

"Até onde se pode ir?" - David Lodge

- Por favor, padre, até onde se pode ir com uma rapariga?
- Não além do que não se envergonhariam de contar à vossa mãe, até onde deixariam que outro rapaz fosse com a vossa irmã.
Quem pergunta é Michael, um dos personagens deste romance surpreendente, sério, inteligente, comovente e divertido, que eu aconselho, vivamente, a adolescentes, e a mulheres e homens maduros.
Quem responde é o velho padre, que Michael arrelia com perguntas casuísticas de moral sexual.
Bem, em que ficamos, é um romance sério ou divertido?
As duas coisas, já que trata de temas sérios - o Cristianismo, a moralidade, a adolescência, a sexualidade, a invenção da pílula, o casamento, o adultério, a doença, a perda, e muito mais - de maneira inteligente, por vezes amarga, mas muitíssimo divertida. Eu soltei umas boas e sonoras gargalhadas.
A história começa no frio e escuro dia de São Valentim de 1952, com um grupo de católicos ingleses, reunidos na igreja de Nossa Senhora e São Judas, a assistir à missa do pároco Austin Brierley, o capelão não oficial da Juventude Universitária Católica.
São jovens, saudáveis, estudantes universitários, e seguiremos as suas vidas até ao final dos anos 70. Ei-los:
- Angela, a rapariga da camisola de angorá, cujo nome equivale a anjo, céu e bolo.
- Polly, sedutora e sexy, encontra consolo no indicador húmido antes de adormecer, mas não sonha mencioná-lo na confissão nem deixar que a impeça de receber o sacramento.
- Miles, figura longilínea e graciosa, um certo ar efeminado.
- Dennis, alto e amaneirado, é o robusto escravo de Angela.
- Adrian, visão limitada, sexualidade adormecida.
- Edward, rosto de boneco de borracha fechado numa expressão de exagerada devoção.
- Michael, cabeça vergada sob o peso da culpa, esconde erecções sob o casaco providencialmente largueirão, no preciso momento em que o padre Brierley eleva a hóstia na consagração.
- Ruth, a rapariga de óculos, desinteressante, atarracada, há muito que pôs de lado as questões de sexo e optou pela leitura e visitas a museus.
- Violet, minúscula, rosto pálido, unhas roídas até ao sabugo e manchadas de nicotina, uma masturbadora regular.
… talvez seja boa ideia explicar a metafísica ou a visão do mundo que estes jovens adquiriram com a educação e formação católicas. Lá em cima estava o céu e lá em baixo o inferno. O nome do jogo era Salvação e o objectivo alcançar o céu e evitar o inferno… Tudo o que faziam ou pensavam era passível de contabilidade espiritual… o caminho para o céu estava cheio de armadilhas.
Será que eles acreditam em tudo isto? O que é o pecado mortal? Será que mantêm intacta a sua virgindade espiritual e não desapontam Cristo?
Com muito humor, David Lodge dá as respostas.
Eu, que “espreitei” o destino de todos, limito-me a dizer que eles anseiam pela vida e não pela morte, e nos seus planos estão casamentos, filhos, profissões, fama, realização, trabalho – não o túmulo e a vida depois dele.
Muitos anos depois, ou melhor, muitas páginas mais à frente, quando todos eles se aproximavam dos quarenta e do cume da vida humana após o qual é sempre a descer, soube que tinham perdido o medo do inferno e nas suas vidas havia agora muito mais sexo do que antes. Mesmo se os seus corpos começavam a exibir pequenos mas inconfundíveis sinais de decadência e de desgaste: barriga dilatada, pernas com veias salientes, falta de visão, queda do cabelo, retracção das gengivas, falta de dentes.
Elas estavam no auge da capacidade do prazer sexual, conscientes de que a capacidade dos corpos para despertar desejo diminuía rapidamente e que fazer amor com a luz acesa era um risco calculado, a menos que fosse uma meia-luz bem doseada.
Eles notavam que o vigor sexual entrara em declínio, pois ao fim de muitas bebidas e noites de amor seguidas, a preocupação deixou de ser a ejaculação precoce dos primeiros anos de casados para passar a ser a simples ejaculação.
Mas soube muito, muito mais.
Saiba também. Espreite o destino deste grupo de jovens. Descubra como eles lidaram com a sexualidade, o amor, a profissão, a família, a doença e a morte. Saiba com se soltaram, fugiram, falharam, romperam, venceram.
Aprenderá e dará (tenho a certeza) sonoras gargalhadas.
Se alguém disser que temas sérios não podem /devem ser tratados de forma divertida, diga-lhe que está tremendamente errado.
Fale-lhe  da Angela, da Polly, do Miles, do Adrian, do Michael…
Divirta-se .
Não renuncie aos prazeres neste mundo para receber a recompensa no próximo.
 
(Gostei tanto deste romance de David Lodge que comprei "Autor, Autor". Será que vou voltar a rir?)
 
Até onde se pode ir?, de David Lodge
Tradução de Helena Cardoso
Ed. ASA, 2006
267 págs.

18 maio, 2014

"O Inverno do nosso descontentamento" - John Steinbeck

Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York.
(Em “Ricardo III”, de Shakespeare)
Meu pai era um tolo por vezes brilhante, amável, bem informado e mal avisado. Sem o auxílio de ninguém, perdeu terras, dinheiro, prestígio e futuro.
Só conservou o nome, de resto a única coisa que lhe interessava.
Quem o diz é o narrador-personagem deste romance, Ethan Allen Hawley, descendente de duas das mais antigas e ricas famílias de New Baytown, uma pequena cidade portuária, outrora um burgo fundado por marinheiros, piratas e pescadores de baleias.
O pai de Ethan perdeu quase tudo o que os Allen e os Hawley acumularam ao longo de séculos. Da ruína salvaram-se várias casas e um estabelecimento comercial, que deixou ao único filho. Também este conhecerá o sabor da ruína.
Regressado da guerra, sem dinheiro e sem experiência profissional, Ethan decide vender algum património para abrir uma mercearia-frutaria na loja herdada. A falência acontece menos de dois anos depois e ele tem de vender o que lhe restava para liquidar dívidas. Consegue ficar com a velha casa de família, onde vive com a mulher Mary e os filhos adolescentes Allen e Mary Ellen.
A mercearia é vendida a Marullo, um siciliano de sessenta e oito anos, estranho e ausente. Ethan passa a caixeiro do estabelecimento. É ele é que abre e fecha o estabelecimento, contacta com os fornecedores, gere o dinheiro de caixa, faz a contabilidade.
Ao fim do dia, depois da porta fechada e da cortina corrida, na penumbra silenciosa, cansado, Ethan “desabafa"  com as latas, frascos, caixas, frutas e legumes.
Ele é um homem íntegro, simples e feliz. Não tem ressentimentos. Aceita a sua nova condição social. Já a família...
Ele convive bem com a troça, a crítica, as tentações e a pressão de todos, para que se empenhe na recuperação da fortuna perdida.
Quando aparece na loja, o patrão instiga-o a enganar os clientes: Ensinar-te-ei a fazer bons negócios. Pensa nos truques. Tens ainda muito que aprender, rapaz. Tu és esperto, rapaz, mas és honesto.
A mulher, que ele ama apaixonadamente, critica-o: Toda a gente se ri de ti. Um senhor muito distinto mas sem vintém é um falhado.
A filha pergunta-lhe: Quando te decides a tornar-te rico? Estou farta de ser pobre.
Baker, o banqueiro, propõe que ele invista o dinheiro herdado por Mary: Perca-o se for preciso, mas arrisque-o. Dê mostras de um pouco de coragem. Os homens não se deixam prostrar.
Biggers, o caixeiro-viajante propõe-lhe um esquema de luvas: Não seja idiota. Toda a gente o faz. Ele (o patrão) não perde nada e você recebe umas boas luvas.
Margie Young-Hunt, a vidente amiga da mulher, predestina: Você está destinado a um grande futuro.
(São poucas, mas "enormes" as personagens deste romance.)
À noite, quando não consegue dormir - Para mim, dormir é um esforço enorme... Quando durmo canso-me. Os meus sonhos são os problemas do dia deformados até ao absurdo. - Ethan caminha pelas ruas da cidade, sempre em direcção ao Porto Velho, o seu lugar de eleição para lembrar o passado e reflectir sobre o presente.
Na América do pós-guerra, onde a hipocrisia e o dinheiro minavam o que no homem existia de mais puro e autêntico, o íntegro Ethan começa a vacilar entre a ordem moral e a ambição.
Um homem deve viver guiado pelos seus princípios ou deixar-se arrastar?
Aposto que quer saber como reagirá o íntegro Ethan a tanta pressão. Alcançará o sucesso financeiro? A que custo?
Eu sei tudo sobre a gradual transformação de Ethan. Sobre as manobras, esquemas e golpes sujos. Sobre a amargura, a tristeza e a infelicidade que se seguiu ao sucesso financeiro e mundano. Eu sei tudo… mas não conto.
Se quiser saber - Em que patife um homem pode tornar-se! – “oiça” a história de Ethan.
É admirável!
 
O inverno do nosso descontentamento, de John Steinbeck
Tradução de João Belchior Viegas
Ed. Círculo de Leitores, 1993
325 págs.

"O Inverno do nosso descontentamento" de John Steinbeck (curiosidades)

Por vezes encontro nas histórias que leio, detalhes deliciosos que gosto de sublinhar.
Neste romance, foi o rol infindo de nomes ternurentos que Ethan chama a Mary, a mulher amada.
Eu diverti-me. Divirta-se também. Memorize alguns. Use-os.
Há ocasiões em que uma simples palavrinha muda tudo... para melhor.
Verdade!
 
- ratinha
- pintainho em flor
- joaninha
- pulgão
- navio de luxo
- querida
- esposa sem mácula
- torrãozinho de açúcar
- coelhinho
- amorzinho
- pézinho de flor
- raminho de feto
- caracolinho
- rapariguinha em flor
- botão de rosa
- mulherzinha querida
- pãozinho com mel
- dorminhoca
- patinho
- passarinho
- pequenina
- filha de príncipe
- pintainha
- pomba
- doçura
- encanto
- carícias
- queridinha
- esquilo voador
- deliciosa mulherzinha
- pombinha
- madona
- ablativo absoluto
- miss ratinha
- amor
- vossa alteza
- pequenina desavergonhada
- flor dos campos.
 
Será que os puristas se zangam por eu "brincar" com um clássico?

09 maio, 2014

"Os níveis da vida" - Julian Barnes

Todas as histórias de amor são potenciais histórias de dor. Se não no princípio, depois. Se não para um, para o outro. Às vezes para ambos.
Então por que aspiramos continuamente a amar? Porque o amor é o ponto onde se encontram a verdade e a magia.
Bem, fiquei completamente aturdida com a leitura deste livro de Julian Barnes, sobre juntar duas coisas ou duas pessoas e depois separá-las.
O romance está dividido em três partes. Estranham-se as duas primeiras - sobre o balonismo no séc. XIX - mas quando chegamos à terceira, ao impressionante testemunho do autor sobre amor, dor, morte, luto, compreendemos a ligação entre as três partes.
1ª - O pecado da altitude
Juntamos duas coisas que ainda não se tinham juntado. E o mundo transforma-se.
O mistério e a magia de voar num balão, de desafiar a gravidade dentro de um cesto.
Numa mistura perfeita de realidade e ficção, Julian Barnes escreve sobre homens e mulheres que num balão visitaram o espaço de Deus e descobriram uma paz que estava para além da compreensão.
O balonista, inventor e fotógrafo Félix Tournachon (Nadar), juntou, em 1958, duas coisas que ainda não se tinham juntado – fotografia (verdade) e o balonismo (magia) - e o mundo transformou-se.
2ª – Ao nível
Juntamos duas pessoas que ainda não se tinham juntado; e às vezes o mundo transforma-se, outras vezes não.
A paixão do inglês Fred Burnaby pela inconstante actriz francesa Sarah Bernard. São ambos balonistas, boémios, viajantes, livres e desprendidos.
Case comigo. Case comigo. Propunha ele.
Eu não sou feita para a felicidade. Pense que sou uma pessoa incompleta. Respondia ela.
Madame Sarah, somos todos incompletos. Eu também sou incompleto. Por isso procuramos outra pessoa. Para nos completar.
Não resultou.
3ª – A perda de profundidade
Juntamos duas pessoas que ainda não se tinham juntado.
Então, a dada altura, mais cedo ou mais tarde, por esta ou aquela razão, um deles é levado. E aquilo que é levado é maior do que a soma do que lá estava.
O testemunho do autor  sobre o seu amor por Pat (Pat Kavanagh, sua agente literária durante quarenta anos), a mulher com quem casou em 1979 e viu partir em 2008, vítima de cancro.
Em tom intimista, Barnes conta como "sobreviveu" à perda, ao desgosto, à solidão, às lágrimas, à tentação do suicídio, à imensa dor.
A dor mostra que não esquecemos; a dor realça o sabor da memória; a dor é uma prova de amor.
Impressionante! Brilhante!
Mais não escrevo, porque esta "prova de amor" merece ser lida. Por todos.
A sério!
 
Os níveis da vida, de Julian Barnes
Tradução de Helena Cardoso
Ed. Quetzal, 2013
109 págs.

05 maio, 2014

Poema de... David Mourão-Ferreira

E POR VEZES

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto dos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

Em "Obra Poética - 1948-1988", de David Mourão-Ferreira, ed. Presença, 1996


(Xana, é este o tal soneto.)

02 maio, 2014

9º - Você sabe em que livro se esconde este “primeiro parágrafo"?

“Ele pertencia a essa classe de homens – de aparência vagamente desagradável, muitas vezes calvos, baixos, gordos, inteligentes – que são inexplicavelmente atraentes para certas mulheres belas. Ou ele julgava que o era, e pensá-lo parecia fazer com que assim fosse.”

Resposta do 8º “Primeiro Parágrafo”:
Em “Como água para chocolate”, de Laura Esquível, ed. ASA, 1993

01 maio, 2014

Frases soltas..."Levantado do chão" de José Saramago

"Quando um homem se queixa, alguma coisa lhe dói. Queixemo-nos pois desta ferocidade sem nome, e é pena que o não tenha, Que vai ser de nós hoje, só com este dinheiro, e as semanas tão atrasadas, o merceeiro não fia, de cada vez que lá vou, ameaça que nos levanta o crédito, nem um tostão mais, Mulher, vai lá experimentar, isso são palavras da boca para fora, o homem não tem nenhuma pedra no lugar do coração, Eu sozinha não vou, que já não tenho cara de entrar aquela porta, só se tu fores comigo, Então vamos os dois, mas um homem não é muito para essas coisas, o seu dever é ganhá-lo, fazê-lo render é com a mulher, além de que as mulheres estão habituadas, protestam, juram, regateiam, fazem choradeira, capazes até de se atirarem para o chão, ai um copo de água que a pobrezinha teve um ataque, e um homem vai, mas vai a tremer, porque devia ganhar e não ganha, porque devida governar a família e não governa, Senhor padre Agamedes, como posso eu cumprir o que prometi quando casei, diga-me lá.
… parece Senhor padre Agamedes, que Deus e a virgem desviaram os seus benignos olhos da terra portuguesa, olhai como andam descontentes as almas, e inquietas, decerto o maligno se apoderou dos mansos corações dos lusitanos, talvez não tenhamos rezado bastante rosário e terço, bem nos avisaram os pastorinhos…"


(Foto tirada da net)