28 fevereiro, 2014

"O amante bilingue" - Juan Marsé

 
Numa tarde chuvosa de novembro de 1975, ao regressar a casa de forma imprevista, encontrei a minha mulher na cama com outro homem…. para guardar a memória dessa desdita, para remexer numa ferida que ainda não sarou, vou transcrever neste caderno o que aconteceu naquela tarde.
Eu, que já li o caderno, atesto que Juan Marés, continua apaixonado pela mulher, Norma Valentí, dez anos depois de a ter apanhado no quarto com um engraxador e de ela o ter abandonado.
E sabem qual foi a primeira coisa que ele viu ao abrir a porta do quarto? Não, não foi a mulher na cama com o amante, foi ele próprio, Juan Marés, reflectido no espelho do armário a abrir a porta, encharcado pela chuva… estonteado pelos ciúmes e pela certeza de ter perdido tudo, até a auto-estima. E é essa imagem, só essa, que ele não consegue esquecer e o levará a esconder-se atrás de uma identidade falsa, para reconquistar a mulher amada.
Estranho? Não, atendendo a que ela é uma milionária e ele um oportunista sem convicção… que aos trinta e sete anos deu o golpe do baú e depois não soube comportar-se.
Atenção, o Amante Bilingue não é só uma estranha e hilariante história de amor. É, acima de tudo, uma genial sátira irónica à dualidade social, cultural e linguística da Catalunha pós Franco.
Vejamos, então, quem são os protagonistas:
Juan Marés, filho de uma ex-cantora lírica alcoólica e de um pobre artista de variedades, foi criado na rua, longe da escola, nos duros anos do pós-guerra. Já rapazote, vendia banda desenhada e romances em segunda mão, nas esquinas do bairro onde vivia.
Norma Valentí, sociolinguista, herdeira de um fabricante de artigos de pele e cabedal, foi criada com todas as mordomias da alta burguesia catalã.
O acaso juntou-os numa greve contra o regime de Franco. Ele tinha trinta e sete anos, ela vinte e três. Apaixonaram-se. Casaram.
Foi um milagre que nos juntou…, diz Marés ao amante da mulher, numa longa e desconcertante conversa no quarto, enquanto ele lhe engraxa os sapatos.
Quatro anos depois, separou-os a fraqueza de Norma por charnegos de toda a espécie. Taxistas, empregados de mesa, cantadores e tocadores de unhas compridas e olhos felinos. Murcianos que cheiram a sovaco, a suor, a peúga suja e a vinhaça.
Norma não quis mais saber de Marés, falar com ele ou mesmo vê-lo.
Marés mergulha na lama da vida, no desespero, na solidão, na marginalidade. Ganha alguns trocos a tocar acordeão na rua. Continua apaixonado pela mulher, não esquece os dias de felicidade partilhada, os sonhos, o reboliço na cama...
Dez anos depois, cansado da vida desgraçada que leva, dos esquema que engendra para ver, ou apenas ouvir a voz da mulher, torturado e amargurado, frente ao espelho - a solidão inventa espelhos - Marés idealiza um plano surpreendente para reconquistar Norma: fazer-se passar por um murciano típico e impostor, um tagarela de longas patilhas e olhos verdes. Terá corpo e voz própria. Será Faneca, o engraxador. Sim, Faneca será o seu outro eu.
Conseguirá Marés (ou Faneca?)  seduzir Norma?
Eu sei, mas não digo.
Zonhar é fixe, mas não convém perder o zentido da realidá, palavras sábias do engraxador, o tal que Marés encontrou na cama com a mulher.
Estupendo!
 
O amante bilingue, de Juan Marsé
Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Ed. D. Quixote, 2013
205 págs.

21 fevereiro, 2014

"Quando o Presidente da República visitou Monchique por mera curiosidade" - António Manuel Venda

Já vai na 3ª edição esta compilação de contos de António Manuel Venda,  escritos entre 1988 e 1990.
São dezasseis histórias pequeninas, deliciosas, cheias de ironia e humor, que descrevem vivências no concelho de Monchique, onde o autor nasceu, em 1968.
São todas desconcertantes, convincentes, risíveis, bem imaginadas e muitíssimo bem escritas, mas a segunda… a que dá título (e que título!) ao livro, a que relata a visita do Presidente da República a Monchique… é fenomenal.
Foi a primeira que li… por “mera curiosidade”… e ri, ri, ri.
Mas, também ri com “A louca paixão do Chico Domingues”, o tal que… foi com os cornos ao chão e só não os partiu porque se calhar já os tinha bem duros, por via da idade.
E com “A osga”, que observava o velho biscateiro, sempre que ele se deitava com a rapariga e se demoravam um no outro pela noite dentro.
E fui, e ri, com o Marcos “À caça do bicho do moinho”, o bicho que só gostava de farinha de trigo. Marcos levava um duro pau de marmeleiro, que se apanhasse o bicho do moinho o mataria de certeza… não daria a mínima hipótese ao ladrão de farinha se lhe acertasse…. de saber do que é que morria, do que é que de repente o fazia ir embora do mundo, do que é que o afastava para sempre do rodízio e da farinha de trigo.
E procurei saber “Quem abusou da espanhola Javiera”, a turista que queria conhecer a Serra de Monchique. Terá sido o Diabalha? Tinha um lindo passado, disso ninguém duvidava. Só a julgamento tinha ido cinco vezes, e todas elas com casos parecidos...
E… e… e…
Como diz a canção de Sérgio Godinho - "soube-me a pouco".
Venham mais contos!
Quando o Presidente da República visitou Monchique por mera curiosidade, de António Manuel Venda
Ed. Just Media, 2013
94 págs.

15 fevereiro, 2014

O dia dos namorados já passou, mas...

… não consigo deixar de reproduzir o que li ontem, já altas horas, e me lembrou que “devemos celebrar o amor, todos os dias”:
 
“Vivemos uma vida normal, verdadeira, e no entanto – e por isso – temos aspirações. Terráqueos, conseguimos às vezes chegar tão longe como os deuses. Alguns elevam-se com a arte, outros com a religião; a maioria com o amor. Mas quando subimos também podemos despenhar-nos. Há poucas aterragens suaves.
Todas as histórias de amor são potenciais histórias de dor. Se não no princípio, depois. Se não para um, para o outro. Às vezes para ambos.
 
Estão por que aspiramos continuamente a amar?
Porque o amor é o ponto onde se encontram a verdade e a magia.”

Em “Os Níveis da Vida”, de Julian Barnes.

14 fevereiro, 2014

"O relatório de Brodeck" - Philippe Claudel

Os homens são estranhos. Cometem as piores atrocidades sem se interrogarem, mas depois não são capazes de viver com a recordação do que fizeram.
Depois de ler “Almas Cinzentas” e “A neta do Sr. Linh” – ambos sublimes e inesquecíveis – voltei ao escritor que sabe, como nenhum outro, criar personagens credíveis e colocá-las nos mais belos ambientes bucólicos. E sempre, num lugar e tempo indefinidos, para que possamos dar asas à imaginação, com as dicas que vai deixando aqui e ali.
É o caso deste romance, salpicado de referências à Segunda Guerra Mundial, e cuja acção decorre na…
Não sei!
Mas isso não interessa nada, quando ficamos presos a um romance com uma trama muito bem pensada, espantosamente bem escrito, brilhante e viciante, que começa assim:
Chamo-me Brodeck e não tive culpa de nada.
Insisto em dizê-lo. Quero que toda a gente o saiba.
Brodeck é dos personagens mais reais que "conheci" na ficção. Por momentos, deixei de ler Philippe Claudel e passei a ouvir Brodeck, o escrivão de uma aldeia perdida em inóspitas montanhas, que elabora relatórios para a Administração, sobre o estado da flora, das árvores, das estações e da caça, da neve e das chuvas.
A vida fluía calma na pequena aldeia, até ao malogrado dia em que a guerra ali chegou e tudo mudou.
Enquanto alguns habitantes tentavam agradar ao invasor, Brodeck reagia com passividade e, por isso, foi deportado para um campo de concentração.
Mas a guerra terminou e o Cão Brodeck  (assim era  tratado pelos guardas) regressou a casa.
E regressou ao seu trabalho de escrivão, com a concordância de todos os habitantes, que assim expiavam a culpa do colaboracionismo com o inimigo.
Brodeck está diferente, isola-se, faz grandes passeios e  não procura a companhia dos homens da aldeia, que têm a cabeça cheia de selvajaria e de imagens de sangue. Homens tolos, falsos puritanos, que cometerão o pior dos crimes sobre um estrangeiro que escolheu aquela aldeia para viver, um homem cordial e educado, que ocupa o tempo em longas e solitárias caminhadas, e a retratar a aldeia e os seus habitantes.
Habitantes que não gostam dos seus modos estranhos, muito menos de se verem retratados por ele, e o matam, perante a passividade das autoridades.
Autoridades, que ordenam ao escrivão que elabore um relatório oficial que branqueie o crime, sem procurar o que não existe, ou já não existe.
Brodeck aceita, contrariado e amedrontado.
À medida que elabora o relatório oficial – sempre espiado, cercado, vigiado - Brodeck escreve outro com a sua versão da verdade, onde cruza a história daquele homem misterioso - De Anderer – o Outro (nunca lhe perguntaram o nome e ele falava pouco, muito pouco), com a sua própria história de vida. E desvenda segredos, segredos sombrios, escondidos em cada pessoa, pedra, casa, rua, árvore, daquela aldeia, onde não há inocentes.
Aldeia que um dia ele também escolheu para viver. Só que nesse tempo, ninguém tinha medo de estrangeiros e foi bem recebido. Agora, o medo transformava os homens. Na verdade, Brodeck sabia-o. Aprendeu no campo de concentração.
Sabia-o quando escutou as palavras sábias do velho que encontrou no caminho: ... às vezes é preferível não voltarmos à terra de onde partimos. Lembramo-nos do que deixámos, mas nunca se sabe o que iremos encontrar, sobretudo quando os homens foram atingidos por uma loucura duradoura. Ainda é jovem… Pense no que lhe digo.
Mesmo assim, Brodeck voltou.
Mas depois pensou, e...
Chamo-me Brodeck e não tive culpa de nada.
O meu nome é Brodeck.
Brodeck.
Por favor, lembrem-se.
Brodeck.
Eu não esquecerei.
Fabuloso!
 
O relatório de Brodeck, de Philippe Claudel
Tradução de Isabel St. Aubyn
Ed. ASA, 2009
256 págs.

07 fevereiro, 2014

6º - Você sabe em que livro se esconde este “primeiro parágrafo"?

Um dia li um livro e toda a minha vida mudou. Desde a primeira página, sofri com tanta força o poder do livro que senti o meu corpo apartado da cadeira e da mesa a que me sentava.“

Resposta do 5º “primeiro parágrafo”:
Em “Ravelstein”, de Saul Bellow, ed.Teorema, 2001