… talvez os homens nasçam com a verdade dentro de si e só não a digam porque não acreditam que ela seja a verdade.
Foi em 1991 que Saramago editou o seu livro mais polémico.
Não o li de imediato, por nenhuma razão particular. Foi depois do tumulto que causou em políticos tacanhos, da irritação da igreja católica e da partida do autor para a ilha espanhola de Lanzarote, que a sua leitura me empolgou e arrebatou.
Agora voltei a pegar-lhe e confirmei: reler Saramago é tão entusiasmante como se da primeira leitura se tratasse.
O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.
Neste livro, Saramago conta-nos a vida de Jesus, um Jesus humanizado, através de uma interpretação muito sua dos textos religiosos.
O que para alguns é uma blasfémia, para mim é puro prazer. Saramago deixa-me pasmada com a torrente imaginativa, sarcasmo e ironia dos seus livros e deste em particular. É assim que se mede a grandiosidade de um escritor. Os que têm medo de polémicas não deixam de ser medíocres.
Sublinhei diálogos excelentes. Deixo aqui alguns.
Jesus e Maria Madgala:
Não conheço mulher. Maria segurou-lhe as mãos, Assim temos de começar todos, homens que não conheciam mulher, mulheres que não conheciam homem, um dia o que sabia ensinou, o que não sabia aprendeu. Queres tu ensinar-me, Para que tenhas de agradecer-me outra vez, Dessa maneira, nunca acabarei de agradecer-te, E eu nunca acabarei de ensinar-te.
Deus e Jesus:
Observo que estás muito mais despachado de espírito, e mesmo um tanto impertinente, considerando a situação, do que quando te vi pela primeira vez, Era um rapaz assustado, agora sou um homem, Não tens medo, Não, Tê-lo-ás, descansa, o medo chega sempre, até a um filho de Deus.
E ainda:
E este filho que sou, para que o quiseste, Por gosto de variar, não foi, escusado seria dizê-lo, Então porquê, Porque estava precisado de quem me ajudasse aqui na terra, Como Deus que és, não devias precisar de ajudas.
Como não posso citar tudo o que sublinhei… termino com um agradecimento e um aplauso ao nosso Nobel.
… o dia chegará em que se terá perdido a memória do que aconteceu, então, dado que os homens para tudo querem explicação, falsa ou verdadeira, inventar-se-ão umas quantas histórias e lendas, ao princípio ainda conservando alguma relação com os factos, depois mais tenuemente, até tudo se transformar em pura fábula.
Fabuloso!
O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago
Caminho, 1991
445 págs.