30 maio, 2015

"Stoner" - John Williams

Na sua mocidade, Stoner imaginara o amor como um estado absoluto do ser ao qual uma pessoa, se tivesse sorte, podia aceder um dia; na idade adulta, decidira que era o paraíso de uma falsa religião, que uma pessoa devia encarar com uma divertida incredulidade, um suave desprezo familiar e uma nostalgia embaraçada (…) Na meia-idade começava a perceber que não era nem um estado de graça, nem uma ilusão; via-o como um ato humano de transformação, uma condição que era inventada e alterada de momento para momento e de dia para dia, através da vontade, da inteligência e do coração.
Poucos romances me empolgaram tanto como este. E já li muitos, muitos.
É triste. É cruel. É desconcertante. É fascinante. É surpreendente. É cativante. É inteligente. É intimista. É viciante. É inesquecível.
É perfeito, pronto!
Começa assim:
William Stoner entrou para a Universidade do Missouri em 1919, aos dezanove anos. Oito anos depois, no auge da Primeira Guerra Mundial, doutorou-se e aceitou um cargo de docente nessa mesma universidade, onde lecionou até morrer, em 1956 (…) Nasceu em 1981, numa pequena quinta no centro do Missouri (…) Desde que se lembrava, William Stoner tinha tarefas para cumprir. Aos seis anos ordenhava as vacas escanzeladas, alimentava os porcos na pocilga a uns metros de casa e recolhia os pequenos ovos de um bando de galinhas magricelas.(...) Era uma família solitária, da qual ele era o único filho, unida pelo imperativo da faina.
Segue-se o relato de toda uma vida.Vida cinzenta, narrada de forma nua e crua. Vida comovente, triste e angustiante, vida feita de muitos  fracassos, que de tão real aqui e ali nos molha os olhos.
Stoner, frágil, humilde como a terra que a família dele arava, discreto, íntegro, um simples filho da terra, um obscuro professor de Literatura Inglesa, zeloso, empenhado, mas nunca reconhecido pelos alunos, nunca estimado pelos colegas.
Apaixonou-se e casou com uma rapariga de vinte anos, alta, esguia e loura, que tocava piano. Eram ambos virgens e tinham ambos a noção da sua inexperiência.
- Vou tentar ser uma boa esposa para ti, Stoner. Vou tentar. Não foi! Grace Stoner nasceu e durante o primeiro ano de vida conheceu apenas o toque do pai, e a voz dele, e o amor dele. Cresceu e tornou-se distante e retraída como a mãe.
Aos quarenta e dois anos, Stoner não conseguia ver nada diante de si de que lhe apetecesse desfrutar e para trás também pouco havia que lhe interessasse recordar.
Aos quarenta e três anos viveu uma curta mas intensa aventura amorosa. 
Aos sessenta e três anos ele percebeu que lhe restava, no máximo, quatro anos de carreira. Tentou ver para além desse limite. Não conseguiu, nem tinha vontade de o fazer.
Aos...
Acabou, não divulgo mais nada.
Leia este romance, por favor.

“Stoner”, o quarto romance de John Williams (1922-94), também professor universitário, passou despercebido aquando da sua publicação em 1965.  Passadas quase cinco décadas, uma tradução para francês da escritora Anna Gavalda resgatou-o do esquecimento. Ainda bem!

Stoner, de John Williams
Tradução de Tânia Ganho
Ed. Dom Quixote, 2014
263 págs.

26 maio, 2015

"Momentos de mim" - Semina Mena Gomes


CRIANÇA

Olhai!
É Primavera.
Há no ar um cheiro novo
Que se sente.
E o nosso coração,
De tão contente,
Bate no peito como louco.
Depois da longa espera.
As flores, que eram semente,
Vão nascendo
Pouco a pouco.
Ah! que vejo agora?
Crianças brincando
Correndo para nós.
Sinto nesta hora
O que digo para vós.
As flores dão ao Mundo
Muita beleza e cor,
Mas só uma criança
Dá sentido à Vida,
Enchendo-a de esperança
Dando e recebendo…
Amor!

É encantador este livro de poemas.
Poucas vezes li poesia que mostrasse tanto a alma de quem a escreveu.
Os versos, intimistas, revelam uma vida inteira, feita de alegrias e tristezas, de muito amor pela família, os amigos, o Alentejo.
Aplaudo Semina Mena Gomes, pela partilha de preciosos momentos.
Aplaudo José Marecos, pela capa perfeita.

23 maio, 2015

"Cemitério de pianos" - José Luís Peixoto

O tempo, conforme um muro, uma torre, qualquer construção, faz com que deixe de haver diferenças entre a verdade e a mentira. O tempo mistura a verdade com a mentira. Aquilo que aconteceu mistura-se com aquilo que eu quero que tenha acontecido e com aquilo que me contaram que aconteceu. A minha memória não é minha. A minha memória sou eu distorcido pelo tempo e misturado comigo próprio: com o meu medo, com a minha culpa, com o meu arrependimento.
“Cemitério de pianos”, quarto romance de José Luís Peixoto, baseia-se, apenas circunstancialmente, na história do atleta português Francisco Lázaro, que faleceu quando corria a maratona, nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912.
Um dos personagens do romance tem em comum com o malogrado atleta, o nome (Francisco), a profissão (carpinteiro) e o gosto pela corrida. Todo o resto é ficção.
Há dois narradores-personagens neste romance. Têm o mesmo nome – Francisco, e a mesma profissão – carpinteiros. São pai e filho. Em tempos diferentes, eles desvendam a história da sua família, a família Lázaro: Francisco-pai, mãe, filhos (Marta, Maria, Francisco, Simão) e netos (Elisa, Ana, Hermes, Íris, Francisco). Família que vive entre o Alentejo e o bairro de Benfica, em Lisboa.
Todo o romance é impregnado da ideia de morte, mas o que se celebra é a vida.
Começa com a morte de Francisco-pai, a quem cabe a primeira frase da história: Quando comecei a ficar doente, soube logo que ia morrer - e termina com a de Francisco-filho, por exaustão, no quilómetro trinta de uma maratona, precisamente no dia do nascimento do seu  filho. Precisamente como aconteceu com o seu pai, que nasceu no dia em que o pai faleceu.
Quilómetro trinta
caio sobre mim próprio: pedras; a minha face assente sobre a estrada, o mundo turvo a partir dos meus olhos, a minha boca a sorver pó, as minhas pernas queimadas, brasas, os meus braços queimados, o meu coração, o meu peito a respirar
o tempo passa em Benfica, o silêncio passa sobre o cemitério de pianos
tenho de ir ao encontro do meu pai.
Mas a morte não é o fio condutor deste romance, que tem por foco principal as relações familiares. Esse está escondido na oficina de carpintaria da família: O Cemitério de pianos - o espaço central da narrativa.
O Cemitério de pianos. A minha mãe evitava falar dessa divisão fechada da oficina. Se o fazia, dizia sempre que não havia lá nada que me interessasse. Quando essa explicação deixou de ser suficiente, falou-me de sustos. Disse:
- Há sustos lá dentro.
Não. Lá dentro há pianos. Muitos pianos. Pianos "mortos", à espera que lhes dêem vida.
Pela oficina, ou melhor, pelo cemitério de pianos, passa a vida inteira desta família. Uma vida feita de amor, música, alegrias, tristezas, violência, dor, traições, fragilidades, morte e… vida.
Não, não vou desvendar o que sei sobre a família Lázaro, para deixar que se deslumbre e aplauda a grande e belíssima história imaginada por José Luís Peixoto.
Uma parte do meu pai ressuscitava quando me via ao espelho, quando existia e quando as minhas mãos continuavam a construir tudo aquilo que ele, secreto, tão próximo e tão distante, tinha começado. Então, pensava que havia uma parte do meu pai que permanecia em mim e que entregava aos meus filhos para que permanecesse neles até que um dia começassem a entregar aos meus netos. O mesmo acontecia com aquilo que era apenas meu, com aquilo que era apenas dos meus filhos e com aquilo que era apenas dos meus netos. Repetíamo-nos e afastávamo-nos e aproximávamo-nos. Éramos perpétuos uns nos outros.
Leia!

Cemitério de pianos, de José Luís Peixoto
Ed. Quetzal, 2006
283págs.

19 maio, 2015

Eu somos tristes… em “Vozes anoitecidas”, de Mia Couto


"Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências.
(…)
Minha vida não é um caminho. É uma pedra fechada à espera de ser areia. Vou entrando nos grãos do chão, devagarinho. Quando me quiserem enterrar já eu serei terra. Já que não tive vantagem na vida, esse será o privilégio da minha morte."

Pequeno excerto do conto “Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?

15 maio, 2015

"Poemas de Deus e do Diabo" - José Régio

CÂNTICO NEGRO
«Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «vem por aqui»!
Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: «vem por aqui»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas nossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como a um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pais, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah! que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: «vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!

José Régio (pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira), nasceu em Vila do Conde, em Setembro de 1901. Foi professor, escritor e desenhador. Faleceu em Dezembro de 1969.
“Poemas de Deus e do Diabo”, o seu primeiro livro de poemas, foi publicado em 1925, era ele aluno de Filologia Românica, em Coimbra. Quando da sua publicação o livro foi alvo de fortes críticas.
No posfácio da edição de 1969, José Régio escreveu:
Um escritor presente à cena literária durante mais de quarenta anos – acha riquíssimas oportunidades de observação no palco, na plateia, nos bastidores. E várias coisas que de momento lhe haviam interessado vivamente – a quase só fumarada e algazarra se lhe reduzem depois. Claro que não tem que se arrepender. Sem a faculdade da ilusão, que movimento e que acções nos seriam possíveis? Só tem que aprender. E até continuar a enganar-se, a iludir-se, a errar, a tactear, se para verdadeiramente continuar a aprender lhe for isso necessário. (…)
Não me arrependo das polémicas em que tenho entrado: umas vezes provocadas por mim, outras desafiado por elas.(…)
Se o polemista não está de todo cego, ou o não é sem remédio, até na polémica pode dizer coisas interessantes, inteligentes ou justas de parte a parte.
Grande José Régio!

12 maio, 2015

Uma semana em Cabo Verde - sol, mar, areia, vento e... livros

Regressei de uma semana de férias no Sal, uma das menores ilhas habitadas de Cabo Verde, e principal foco de atracção turística do arquipélago.
A ilha do Sal é muito árida e plana, tem extensas praias de areia branca, um mar azul-turquesa, um clima ameno com pouca variação da temperatura, chuva escassa, e… e muito vento quente e seco, que chega do deserto do Sara.
Senti falta de mais calor (a temperatura não ultrapassou os 25 graus) e de mais banhos de mar (a água estava, vá lá, um pouco fria e agitada).
Aproveitei para visitar os pontos de maior interesse da ilha, caminhar na praia, apreciar a hospitalidade, alegria e simpatia do povo cabo-verdiano, ginasticar o corpo ao ritmo do funaná, ginasticar a mente em demoradas e excelentes leituras.
Comigo levei três livros:
Stoner - Na viagem de Lisboa para o Sal "entrei", meio às escuras, na história de vida do professor de literatura,William Stoner. História feita de desilusões, fracassos, tristezas.
Cemitério de pianos  - No areal, "espreitei", com óculos de sol, o quotidiano da família de Francisco. História cativante desde a primeira frase: "Quando comecei a ficar doente, soube logo que ia morrer".
Mataram a cotovia - Ainda no Sal, "mergulhei" nas primeiras páginas da história de Scout, a menina rebelde que cresce numa sociedade racista. Como não pude ler na viagem de regresso, cheguei ao fim da história já "derramada" no meu sofá.

No Sal, mesmo sem o sofá habitual, senti-me em casa.
A sério!

08 maio, 2015

"No café da juventude perdida" - Patrick Modiano

No café Condé reúnem-se poetas malditos, futuros situacionistas e estudantes À nostalgia que impregna aquelas paredes junta-se um enigma personificado numa mulher: todas as personagens e histórias confluem na misteriosa Louki (...) ela encarna o inalcançável objecto do desejo. Louki, tal como todos os boémios que vagueiam por Paris espectral, é uma personagem sem raízes, que inventa identidades e luta por construir um presente perpétuo.
Das duas entradas do café, ela utilizava sempre a mais estreita, a chamada porta da sombra. Escolhia a mesma mesa, ao fundo da pequena sala. Nos primeiros tempos, não falava a ninguém, depois travou conhecimento com os clientes habituais do Condé (…)
Não tinha hora certa para chegar. Podia encontrar-se lá de manhã muito cedo. Ou então surgir por volta da meia-noite e ficar até à hora do encerramento (…) ela refugiava-se ali, no Condé, como se quisesse evitar qualquer coisa, escapar a um perigo.
Ela… ela… ela…
Quem era “ela”? Quem era aquela jovem enigmática que numa noite de Outubro entrou pela primeira vez no Condé, ponto de encontro do que um filósofo sentimental chamava «a juventude perdida», e voltou nas noites seguintes? Quem era “ela"?
Os clientes do Condé não faziam perguntas uns aos outros, então, numa noite em que ela entrou no café por volta da meia-noite, deram-lhe um nome: «Esta noite, eu te baptizo. Doravante, chamar-te-ás Louki.» 
Mas o seu verdadeiro nome era Jacqueline. Jacqueline, filha de uma empregada do Moulin Rouge e de pai desconhecido. Jacqueline Delanque, nome de solteira. Jacqueline Choureau, nome do marido abandonado.
Quando tinha quinze anos, davam-me dezanove. E mesmo vinte. Não me chamava Louki, mas Jacqueline. Era ainda mais nova quando aproveitei pela primeira vez a ausência da minha mãe para sair. Ela ia trabalhar por volta das nove horas da noite e não regressava antes das duas da madrugada. 
Eu tinha muito para contar sobre o passado enigmático de Louki, sobre as suas longas caminhadas sem objectivo preciso, sobre os seus encontros e desencontros, sobre o Condé e os seus clientes habituais, sobre… sobre…
... mas fico por aqui, para não estragar o mistério de uma história sobre "o poder da memória e a busca da identidade", feita de saltos entre o passado e o presente de quatro narradores distintos, "perdidos" na boémia Paris dos anos 60. Uma história nem sempre fácil de seguir mas… muito boa!
Já está. Deixa-te ir.

No café da juventude perdida, de Patrick Modiano, Prémio Nobel de Literatura, 2014
Tradução de Isabel St. Aubyn
Ed. Asa, 2009
110 págs.

05 maio, 2015

9º - Está num livro de José Saramago. Sabe qual é?

“Só me ficaram com metade do carregamento, dizem que passou a haver menos compradores para o barro, que apareceram à venda uma louças de plástico a imitar e que é isso que os clientes preferem, Não é nada que não devêssemos esperar, mais tarde ou mais cedo teria de suceder, o barro racha-se, esboicela-se, parte-se ao menor golpe, ao passo que o plástico resiste a tudo e não se queixa, A diferença está em que o barro é como as pessoas, precisa que o tratem bem, O plástico também, mas é certo que menos, E o pior é terem-me dito que não lhes leve mais louça enquanto não a encomendarem, Então vamos parar de trabalhar, Parar não (…)Não queiras desanimar-me, Só procuro ver as coisas como são, foi o pai quem disse, ainda agora, que três gerações de oleiros na família é mais do que suficiente, Não chegarás a ver a quarta geração, irás viver para o Centro com o teu marido, Deverei ir, sim, mas o pai irá comigo, Já te disse que nunca me hás-de ver a viver no Centro…”

Se já leu, é fácil chegar lá. Vire as páginas. Releia. Deslumbre-se.
Se acertar, ganhará... um enorme aplauso!

O título do livro nº 8 é:
Caim”, Editorial Caminho, 2009

02 maio, 2015

"Vozes anoitecidas" - Mia Couto

Um homem chora? Sim, se lhe acordarem a criança que tem dentro.
Em 1987, Mia Couto, o biólogo, professor, jornalista e já então reconhecido poeta moçambicano, estreou-se na ficção com “Vozes anoitecidas”, uma compilação de doze histórias sobre a realidade moçambicana no período pós-guerra. Com ela recebeu o Grande Prémio da Narrativa (1990) e o reconhecimento mundial.
No Texto de Abertura Mia Couto avisa: O que me dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma (...) Estas são histórias que desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do mundo, depois, deslumbra com doze pequeninas histórias, magistralmente bem escritas, reais mesmo se inventadas, fascinantes mesmo se absurdas. Histórias trágicas, sofridas, tristes, iluminadas, contadas por homens e mulheres de “vozes anoitecidas”:
. A fogueira
A velha estava sentada na esteira, parada na espera do homem saído do mundo. As pernas sofriam o cansaço de duas vezes: dos caminhos idosos e dos tempos caminhados.
A fortuna dela estava espalhada pelo chão: tigelas, cestas, pilão. Em volta era o nada, mesmo o vento estava sozinho.
. O último aviso do corvo falador
… Dona Candida, mulata de volumosa bondade, mulher sem inimigo. Recém-viúva, já ex-viúva. Casou rápido segunda vez, desforrando os destemperos da ausência… Candida não podia guardar a vida dela. Seu corpo ainda estava para ser mexido, podia até ser mãe. Verdade é que, nesse intervalo, nunca foi muito viúva. Era uma solitária por acidente, não de crença. Nunca abrandou de ser mulher.
. O dia em que explodiu Mabata-bata
. Os pássaros de Deus
. De como se vazou a vida de Ascolino do Perpétuo Socorro
. Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?
. Saíde, o Lata de Água
Quando souberam que andava com ela, condenaram-no. Ela estava muito usada. Devia escolher uma intacta, para ser estreada com seu corpo. Ele não quis ouvir. Foi então que passaram a chamá-lo de Lata de Água. Em toda a parte, alcunha substituiu o nome. A água aceita a forma de qualquer coisa, não tem a própria personalidade.
. As baleias de Quissico
. De como o velho Jossias foi salvo das águas.
. A história dos aparecidos
É uma verdade: os mortos não devem aparecer, saltar a fronteira do mundo deles. Só vêm desorganizar a nossa tristeza.
. A menina do futuro torcido
. Patanhoca, o cobreiro apaixonado
O patanhoca foi ele que matou a china Mississe, dona da cantina da Muchatazina. Agora, a razão que lhe fez matar, não sei. Falam muita coisa, cada qual conforme. Perguntei, fui respondido. Vou contar a estória. Nem isso, pedaços de estória. Pedaços rasgados como as nossas vidas. Juntamos os bocados mas nunca completa.

São fascinantes estes contos de Mia Couto. Com o seu jeito próprio de brincar, iluminar e ritmar  as palavras, ele recupera memórias, dá voz a um povo sofrido e divulga a cultura moçambicana.
Leia-os e ficará como eu - maningue enfeitiçada.

Vozes anoitecidas, de Mia Couto
Ed. Caminho, 1987
151 págs.